Mais do que um corpo, uma história (05/11/2022)

Nasci a 10/04/1993, numa cidade chamada Timisoara, na Roménia e para os mais preguiçosos tenho 30 anos.

E perguntas-te tu, tu ai que estás a ler, o que é que uma rapariga de 30 anos pode ter para contar?! 

Isto não é um livro, não é uma publicidade manhosa, nem tão pouco uma autobiografia apesar de que vou falar da minha vida sim.

Isto sou eu, sem filtros, sem truques, sem esconder nada para além do que o meu subconsciente esconde de mim própria, sou eu como pouca gente me conhece, sou a Patricia que de dia é forte mas de noite quando está com medo embala-se sozinha até adormecer.

No final desta historia gostava que não sentissem pena, nem compaixão, nenhum desses sentimentos que se sentem quando vemos uma criança a sofrer, porque na verdade é isso que vão ver, mas está tudo bem, porque de dia sou eu, a Patricia forte e até porque são 00:48m e eu decidi que não são horas de me embalar na cama para fugir a realidade.

O que vou contar, poucas pessoas sabem, e mesmo assim algumas não sabem todos os detalhes então se a memória me permitir, se as lagrimas me deixarem enxergar, hoje vou escrever sobre como foram os meus primeiros 13 anos de vida.


A família por parte do meu pai eram da cidade, e por parte da minha mãe de uma aldeia que fica a 40min da cidade, o meu avô materno foi um homem pouco compreensível, era bastante violento perante a desobediência o que levou a minha mãe a fugir dele, literalmente, ele queria força-la a casar se com um outro qualquer e no meio da teimosia da minha mãe e os encantos de um jovem que de 5 em 7 palavras que dizia eram mentira, apareci eu.


Obviamente não fui desejada muito menos planeada, e ele sugeriu que a minha mãe abortasse e foi quando ela bateu pé (as vezes questiono me para quê), muito resumidamente, cena à novela porque ela ia deixa-lo, ele "acordou" para a vida foi atrás e acabaram casados.


Entre o casamento e o meu nascimento passaram-se meses, e desde cedo começam as duvidas na minha vida, talvez se torne um pouco confuso a partir daqui, mas bem vindo/a a minha cabeça.


Mudamo-nos para uma casa, na cidade, era verde por fora e fria por dentro, fomos viver perto da mãe do meu pai, ela por sua vez sempre foi uma mulher duvidosa e mais para a frente vais perceber porque...


Sei que tinha um "avô", lembro-me dele, muito vagamente, não era o meu avô de sangue, ele morreu quando o meu pai tinha nascido, a minha avó por sua vez voltou a casar-se cerca de 6 vezes.


Mas sei, hoje ainda sinto, o amor que ele tinha por mim, todos os dias para me adormecer levava-me no seu DACIA vermelho e só parava quando estivesse a dormir, honestamente não me lembro do nome dele, só da boina e da cara enrugada, morreu dia 1 de abril nos braços da minha mãe, mal sabia ele quanto eu ia precisar das boleias dele para o vale dos lençóis...


Depois da morte dele as coisas só pioravam, as discussões eram cada vez mais frequentes, era o meu pai que chegava bêbado a casa e achava que havia pó nos móveis, era a minha avó que achava que a minha mãe devia de saber como lavar a roupa (éramos muito pobres, a roupa era lavada a mão), era o dinheiro que já não chegava para a comida, e não faltou muito até que a violência também deu o seu ar da graça, a verbal já tinha começado há muito tempo, mas a física foi dura, chapadas, murros, pontapés no meio a palavrões nojentos e não penses que ele esperava que eu saísse ou alguém me tirasse de perto dele (ate porque ninguém se metia), e sabes o que é pior? tinha idade suficiente para perceber e absorver tudo aquilo.


Ver a minha mãe no chão a ser espancada aos pontapés enquanto lhe cuspia para cima, achas, que é uma memoria que se consegue apagar numa vida?


No meio a tantas más memorias, recordo me de uma vez em que estávamos os três na cozinha, eles começaram a discutir sobre algo relacionado com uma visita a aldeia, algo não agradou ao meu pai, pegou a minha mãe pelo pescoço e tentou queimar lhe a cara no fogão, as coisas aconteceram tão rápido que as vezes fico na duvida se terá sido tudo no mesmo dia, o gorro da minha mãe caiu por cima da chama do fogão e eu tentei meter me entre os dois, o meu pai ao tentar bater na minha mãe acertou me, daqui para a frente já não me lembro, o que sei é aquilo que a dona Petra conta, o meu pai tem 2,05m só a mão dele era maior que a minha cabeça, voei literalmente alguns metros contra a parede e acho que entrei em alguma espécie de choque e foi ai que a minha mãe, com os seus 1,60m foi ao pescoço do meu pai e para o azar dele a minha mãe teve uma crise de espasmofilia, ela simplesmente não conseguiu soltar a mão e ele só não se ficou por ali porque a minha avó entrou e viu o que se estava a passar.


Honestamente não sei como a minha mãe perdoou tantos maltratos, tantos anos.

Tudo foi piorando, a comida cada vez mais escassa, as agressões cada vez mais frequentes, não me lembro de ter voltado a vê-lo sóbrio, a minha mãe pedia farinha aos pais, ovos e leite e ia pescar todos os dias para temos algo que comer enquanto o meu pai passava as tardes a beira do rio com prostitutas e álcool. Nós roubávamos eletricidade e a agua? Nem sei muito menos sei de onde vinha o gás...


Numa noite de inverno, o meu pai chegara a casa bem tarde, muito bêbado, as discussões tinham uma evolução lenta, ele começava por embirrar com algo eles ficavam na gritaria por horas até que as coisas escalavam para a agressão, só que nesse dia a fúria do meu pai era cega, até que as tantas de madrugada a minha mãe pegou em mim e fugiu, os invernos lá chegam até aos 20graus negativos, nos estávamos descalças e em roupa de dormir, a 20 min da nossa casa tínhamos uma espécie de barragem que tinha uns tubos gigantes por onde passava agua quente creio eu, estavam sempre quentinhos, ficamos lá o resto da noite.


Até que um dia e lembro me tão bem porque para mim foi literalmente do dia para a noite, vi a minha mãe a lavar um monte de roupa, nunca a vi a lavar tanta roupa, e percebi que algo se passava, no dia seguinte eu, minha mãe, meu pai e minha avó saímos a andar na mesma direção, foi pouco, 15min e estávamos ao pé de um autocarro, era tipo minibus, e ela entrou e eu fui também, porque na minha inocência não sabia o que se estava a passar. Ela virou se para mim com lagrimas nos olhos e disse "a mamã agora vai procurar algo melhor para nos, tens que ficar com Tica (acunha do meu pai, porque eu nunca consegui chamar lhe pai)" e eu respondi "não me deixes sozinha com estes malucos" tinha 9 anos. Era suposto ser uma criança ingênua, mas de infância pouco tive direito.


O que se segue é o que lhe chamo de pior ano da minha vida. A minha avó teve que arranjar um trabalho e desapareceu, pouco depois o meu pai deixara de trabalhar e vou contar porque, tem piada, a minha mãe mandava-me pacotes com roupa e brinquedos (sim porque até aos 9 anos contava pelos dedos de uma mão os brinquedos que tinha) no entanto para o meu pai sustentar o seu vicio vendia a roupa, os brinquedos e tudo o que fosse possível vender, não contente com isso, chantageava a minha mãe, ela so podia falar comigo se lhe enviasse dinheiro.


Pouco depois ficamos sem luz, e eu fiquei sozinha, dias, semanas... o meu pai extorquia dinheiro a minha mãe com historias de que eu estava no hospital e precisava tratamento enquanto eu estava sozinha em casa a procura de comida em todos os cantos da casa, as vezes tinha sorte e encontrava pão rijo, molhava com agua e punha açúcar para comer, não vi nenhum centavo desse dinheiro, usava roupas que eram de há 2/3 anos atras que mal me serviam, não me lembro de ir a escola mas lembro me de pedir dinheiro emprestado para comprar batatas e fazer puré, nunca.me.esqueci.dessa.divida.


Passado pouco tempo fomos despejados, da minha avó não soube mais nada, eu e o meu pai mudamos muito de casa, vivemos por curtos períodos em casas de "amigas" outras de amigos, vivi com ciganos, ganhei todos os bichos (dos piores) que podiam haver desde externos a internos, andava descalça e suja em pleno inverno, ainda que fosse uma criança bastante autônoma, não era suficiente para me manter saudável.


Até um dia, estava sozinha (para variar) a brincar, e lembro me de duas senhoras simpáticas terem entrado pelo pátio da casa adentro, perguntaram me por algum adulto mas não havia ninguém, e fizeram me varias perguntas acerca da maneira que vivia, vim a saber que se tratava de uma associação de proteção a criança e o objetivo seria tirarem me dali e na mesma sequencia de dias acordei numa daquelas cenas de filme em que a policia entra casa adentro e revira tudo a procura de algo, fiquei tão assustada por vê-los ali com as armas na mão que nem percebi mas encontraram algo, sei porque  meu pai ligou a minha mãe no maior desespero que se não arranjasse dinheiro (advogado?) seria preso.


A minha mãe exigiu que ele assinasse uns papeis a dar autorização a minha tia (irmã da mãe) tomar conta de mim, e assim consegui sair do inferno e ir para a aldeia, mas estava enganada quando achei que ia ter sossego.


Entre eu sair da cidade e ir viver para a aldeia não existem memorias, na verdade muitas das memorias que deviam de existir deram lugar a um sitio escuro e medonho.

Recordo me de ser feliz na aldeia no entanto, entre muitos telefonemas do meu pai a dizer me que se ia matar se eu não fosse para perto dele (sim porque foi lhe tirada a fonte de rendimento afinal) ou a ameaçar que vinha por fogo a casa, fui sendo feliz, sempre que a minha tia me comprava um chocolate, quando estendia a minha manta na relva verde e brincava com as folhas, quando ia pasear com o meu tio de carroça e íamos apanhar milho no campo e fazer espantalhos, quando aprendi a tirar o leite as vacas, quando aprendi a fazer massa do 0, e aos poucos fiz amigos, amigos que vinham de famílias semelhantes da minhas outros que não entendiam o que se passava.


Uma das vezes que o meu pai me convenceu a passar o natal com ele (e talvez seja a minha pior memoria do natal e a razão pela qual não gosto do natal) ele vivia uma casa de um casal amigo, em tempos brincara com a filha deles, então as casas ficavam todas no mesmo pátio, e eu cheguei a casa era fria, tinha várias garrafas de álcool espalhadas e cheirava a tabaco, eu trazia a roupa do corpo, roupa para dormir e um leitor de CD's e um CD das Açúcar Moreno, finalmente tinha algo que a minha mãe me mandara, juntamente com um diário que ela tinha escrito para mim desde que cá tinha chegado. Nesse dia o meu pai pediu me emprestado o leitor de CD's com o CD, eu dei e mandou me ir brincar com as vizinhas, quando tinha chegado a casa ele estava bêbado e pedi lhe o leitor de volta, disse que o teria emprestado a uma amiga.


Não satisfeita e sabendo do que estava a acontecer ganhei coragem e disse "ou me trazes de volta agora ou peço ao meu tio para me vir buscar"... Ele saiu mas pouco depois voltou com um homem, estava mal vestido, cheirava mal e estava bêbado. Só para criar uma imagem, nos dormíamos na mesma divisão, eu numa cama ele noutra e no meio havia uma mesma cheia de garrafas de álcool, ficaram algum tempo a beber em casa e o meu único entretenimento era olhar para eles, ouvir as conversas grotescas e o meu pai a chamar puta a minha mãe. Passado 2h da manhã, o meu pai sai com a desculpa de que me vai trazer o leitor e eu fiquei, o homem estranho ficou também.


O que aconteceu a seguir? A verdade é que não sei, a minha mente se transforma nesse lugar medonho e escuro e não consigo lembrar me, nem sei se quero, so me lembro que era cedo, eu acordei em pânico, estava sozinha, sai a correr de casa de pés descalços, bati com toda a força na porta do vizinho e pedi que ligasse aos meus tios. Um par de horas depois chegou o meu tio, mas também o meu pai, bêbado e voltou a ameaçar me "se fores embora vou meter uma bala na minha cabeça e a culpa vai ser tua e da puta da tua mãe" só que ao vivo era mais assustador, porque ele estava muito quieto. 

Fiquei.


Mais tarde os meus tios tentaram fazer de tudo para eu ser uma criança normal, nunca conseguiram. 

Passado 3 anos a minha mãe voltou para finalizar o divorcio, obviamente não fui poupada de nada... Nunca quis magoar o meu pai, na verdade não queria magoar ninguém, so não queria que me magoassem mais.


 Cada vez que me explicavam que tinha que falar com aquele senhor (advogado) ficava em pânico, porque na minha cabeça o meu pai ia preso por tudo o que fez (tinha 12 anos e tinha essa noção!), na verdade estavam a lutar pela minha custódia, até hoje não percebi como isso acabou, porque no fim o advogado do meu pai, claramente bêbado ligou para a casa dos meus avos, eu atendi e ouvi um monte de barbaridades, insultos e mais ameaças... e passado mais um ano finalmente pude vir para Portugal.

Sabendo que viria para Portugal, em Setembro de 2006, com 13 anos, pedi para passar o mês de Agosto com o meu pai, achei que seria uma boa ideia para sair "de bem" com ele, com a minha avó, com tudo.


 Ele vivia com ela desta vez e ate hoje em dia vivem os dois na mesma casa, na altura tinham acabado de se mudar para lá, uma casa simples sem casa de banho, apenas com uma sanita, mas tudo bem, também nunca tinha tomado banho numa banheira antes portanto tanto fazia. Pensei que ele se tivesse redimido, pensei que fosse ter em conta tudo, no inicio, não bebia, não tinha por perto a má companhia dos amigos dos copos, conseguia ser boa pessoa, mas durou pouco.


Recordo-me perfeitamente do novo vizinho, um homem medonho com a cara deformada de cheirava tanto a álcool, era tudo o que o meu pai não precisava, sei que naquela casa não consumiam só álcool, uma vez entrei rápido de mais na casa dele a procura do meu pai e eles esconderam rapidamente algo que estava em cima da mesa, pouco depois, com 13 anos saia as tantas da manhã a procura de uma farmácia pela cidade porque via o meu pai a vomitar sangue e com 13 anos eu sabia o que isso significava... Depois destes episódios, sempre que encontrava uma garrafa de álcool pela casa mandava tudo fora e a minha avó olhava petrificada, depois entendi porque, também lhe batia.


Antes de realmente vir, houve algo com uma assinatura que estava em falta por parte do meu pai, era obrigatória e decisiva, mas mais uma vez ele viu a sua mina de ouro nessa assinatura, a minha tia, responsável por mim ajoelhou se a ele a pedir lhe para me deixar vir e como tudo tem um preço, a minha liberdade também teve, 5 mil euros. A minha mãe fez das tripas coração para arranjar o dinheiro o mais rápido possível, e graças a elas, hoje estou aqui, em minha casa, com o coração na mão, a contar te a historia da minha vida.


Se pudesse escolher, escolhia ter tido uma vida normal, ter memorias felizes, conseguir dormir a noite, sentir amor pelas pessoas que me deram vida, gostar do natal, não ter medo do escuro.

Mas está tudo bem, a vida atirou me aos lobos, levei dentadas pelo caminho, estou a sarar as feridas e acho que algumas não têm cura, aprendi formas de me defender que poucas pessoas vão aprender, tenho valores morais que ninguém mós vai tirar, sei o que quero da vida e sei que vou consegui-lo, tornei me uma mulher forte. Enquanto vejo pessoas a almejar todas e mais algumas coisas materiais para atingir a felicidade, eu sei onde mora a minha felicidade, é e vai ser sempre, nas pessoas que amo e o meu desejo para esta vida é criar o meu próprio coração, e fazer dele/a uma pessoa boa, dar lhe todo o amor que eu devia ter recebido, compreensão e um colo enquanto cá estiver.

Patricia.

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